Renegociar a dívida pública<br>é um imperativo nacional

Paulo Sá

Há seis anos, no dia 5 de abril de 2011, o PCP apre­sentou ao povo por­tu­guês a sua pro­posta de re­ne­go­ci­ação da dí­vida. Ar­ti­cu­lada com me­didas que vi­savam o cres­ci­mento eco­nó­mico e o pro­gresso so­cial, a pro­posta do PCP cons­ti­tuía-se como uma al­ter­na­tiva pa­trió­tica e de es­querda ao pro­grama da troika que, na al­tura, PS, PSD e CDS ne­go­ci­avam com a Co­missão Eu­ro­peia, o Fundo Mo­ne­tário In­ter­na­ci­onal e o Banco Cen­tral Eu­ropeu.

 

Sem um pro­cesso de re­ne­go­ci­ação da dí­vida nos seus prazos, juros e mon­tantes, o País es­taria con­de­nado, du­rante dé­cadas, ao de­fi­nha­mento eco­nó­mico e ao em­po­bre­ci­mento

Nos meses an­te­ri­ores, uma in­tensa cam­panha de chan­tagem e medo havia apre­sen­tado o pro­grama da troika como um pro­grama de ajuda ao nosso País, sem o qual não ha­veria di­nheiro para pagar sa­lá­rios e pen­sões, nem para as­se­gurar os ser­viços pú­blicos e as fun­ções so­ciais do Es­tado na saúde, edu­cação e se­gu­rança so­cial. Sem o apoio be­ne­mé­rito da troika – re­petia-se até à exaustão – Por­tugal en­traria em ban­car­rota e os por­tu­gueses ve­riam o seu nível de vida afundar-se a pique. Tendo os tra­ba­lha­dores e o povo por­tu­guês vi­vido acima das suas pos­si­bi­li­dades – afir­mava-se des­pu­do­ra­da­mente – o pro­grama da troika co­lo­caria em ordem as contas pú­blicas, di­mi­nuindo, em par­ti­cular, a dí­vida pú­blica para ní­veis de sus­ten­ta­bi­li­dade.

O PCP com­bateu esta cam­panha desde o pri­meiro mo­mento, de­nun­ci­ando a ver­da­deira na­tu­reza do pro­grama da troika: um pro­grama de li­qui­dação de di­reitos la­bo­rais e so­ciais, de con­fisco de ren­di­mentos dos tra­ba­lha­dores e do povo, de au­mento dos im­postos sobre os ren­di­mentos do tra­balho, de des­man­te­la­mento de es­tru­turas e ser­viços do Es­tado e de pri­va­ti­zação de em­presas es­tra­té­gicas. A al­ter­na­tiva a este rumo de ex­plo­ração e em­po­bre­ci­mento, aquela que me­lhor servia os in­te­resses na­ci­o­nais, era a po­lí­tica pa­trió­tica e de es­querda, pro­posta pelo PCP, da qual a re­ne­go­ci­ação da dí­vida cons­ti­tuía um as­peto pri­o­ri­tário.

A vida veio com­provar a jus­teza da aná­lise e da pro­posta do PCP. O pro­grama da troika, tão di­li­gen­te­mente apli­cado pelo an­te­rior go­verno PSD/​CDS, teve con­sequên­cias dra­má­ticas, tra­du­zidas em ní­veis in­su­por­tá­veis de de­sem­prego, em baixos sa­lá­rios, na emi­gração ma­ciça, no alas­tra­mento da po­breza e da mi­séria e no agra­va­mento das in­jus­tiças e de­si­gual­dades so­ciais.

E a dí­vida pú­blica, ao fim de quatro anos desta po­lí­tica de in­fer­ni­zação da vida dos por­tu­gueses, não só não di­mi­nuiu como cresceu a um ritmo ace­le­rado, sem pa­ra­lelo na nossa his­tória re­cente. Se em 2010, ano ime­di­a­ta­mente an­te­rior à apli­cação do pro­grama da troika, a dí­vida pú­blica era de 96 por cento do PIB, em 2014 atingia já os 130 por cento. Se em 2010 os en­cargos anuais com os juros da dí­vida pú­blica eram de 5300 mi­lhões de euros, em 2014 atin­giam já os 8600 mi­lhões.

Dí­vida é in­sus­ten­tável

A di­mensão co­lossal da dí­vida pú­blica não se deve a gastos ex­ces­sivos do Es­tado. Nem os tra­ba­lha­dores e o povo por­tu­guês vi­veram acima das suas pos­si­bi­li­dades. As causas do pro­blema são ou­tras: o aban­dono do apa­relho pro­du­tivo, a des­pro­tecção do mer­cado in­terno, as pri­va­ti­za­ções, a fi­nan­cei­ri­zação da eco­nomia, o fa­vo­re­ci­mento do grande ca­pital e da es­pe­cu­lação fi­nan­ceira e, claro, a in­te­gração no euro. É hoje uma evi­dência que o an­te­rior go­verno PSD/​CDS uti­lizou a dí­vida pú­blica como um mero pre­texto para impor a sua po­lí­tica de ex­plo­ração e em­po­bre­ci­mento.

A dí­vida pú­blica é in­sus­ten­tável. Sem uma so­lução de re­ne­go­ci­ação, como aquela que o PCP propõe, a dí­vida con­ti­nu­aria a travar o de­sen­vol­vi­mento eco­nó­mico e so­cial do nosso País por muitas dé­cadas.

Há mais de uma dé­cada que su­ces­sivos go­vernos, ora do PS, ora do PSD/​CDS, assim como di­versas or­ga­ni­za­ções in­ter­na­ci­o­nais, te­o­rizam sobre a emi­nente re­dução da dí­vida, apre­sen­tando pro­jec­ções sobre a sua evo­lução fu­tura. Apesar de todas essas pro­jec­ções fan­ta­si­osas terem fa­lhado re­don­da­mente, ti­veram o mé­rito de mos­trar que, mesmo em con­di­ções ir­re­a­lis­ti­ca­mente op­ti­mistas, a re­dução da dí­vida para va­lores sus­ten­tá­veis de­mo­raria muitas dé­cadas.

Entre 2011 e 2015, o an­te­rior go­verno PSD/​CDS pro­duziu di­versas pro­jec­ções que pre­viam que no ano se­guinte a dí­vida pú­blica en­traria numa tra­jec­tória des­cen­dente até que, em 2035, fi­nal­mente, pas­saria abaixo dos 60 por cento do PIB. Todas essas pro­jec­ções fa­lharam. A dí­vida não só não en­trou numa tra­je­tória des­cen­dente nos anos de chumbo do pro­grama da troika, como cresceu como nunca antes. Mais re­cen­te­mente, na dis­cussão sobre o Or­ça­mento do Es­tado para 2016, o ac­tual Go­verno PS ac­tu­a­lizou essas pro­jec­ções, as quais pas­saram a apontar o lon­gínquo ano de 2055 como aquele em que a dí­vida des­ceria abaixo dos 60 por cento do PIB.

Pe­rante tais pro­jec­ções, a con­clusão é óbvia. Sem um pro­cesso de re­ne­go­ci­ação da dí­vida nos seus prazos, juros e mon­tantes, o País es­taria con­de­nado, du­rante dé­cadas, ao de­fi­nha­mento eco­nó­mico e ao em­po­bre­ci­mento.

A der­rota do go­verno PSD/​CDS nas elei­ções le­gis­la­tivas de Ou­tubro de 2015 per­mitiu ini­ciar um pro­cesso de re­po­sição de di­reitos e ren­di­mentos, o qual, apesar de li­mi­tado e in­su­fi­ci­ente, deu res­posta a al­guns dos pro­blemas mais ur­gentes dos tra­ba­lha­dores e do povo por­tu­guês. Mas nesta nova fase da vida po­lí­tica na­ci­onal o pro­blema da dí­vida per­siste.

A re­cusa do PS e do seu Go­verno em re­ne­go­ciar a dí­vida pú­blica – ou sim­ples­mente de equa­ci­onar esse pro­cesso –, assim como a opção de aceitar todos os cons­tran­gi­mentos im­postos no âm­bito da União Eu­ro­peia e da União Eco­nó­mica e Mo­ne­tária, têm sé­rias con­sequên­cias para o nosso País.

Ima­gi­nemos, por um mo­mento, o que po­deria ser feito se Por­tugal pu­desse dispor dos oito mil mi­lhões de euros que são ca­na­li­zados, anu­al­mente, para o pa­ga­mento dos juros da dí­vida pú­blica. Quantos pro­blemas na­ci­o­nais po­de­riam ter uma res­posta ade­quada? Quantos mé­dicos e en­fer­meiros po­de­riam ser con­tra­tados? Quantas es­colas e hos­pi­tais po­de­riam ser cons­truídos? Que apoios so­ciais aos mais des­fa­vo­re­cidos po­de­riam ser re­for­çados? Quantos im­postos sobre o ren­di­mento do tra­balho e sobre o con­sumo po­de­riam ser re­du­zidos? Que apoios po­de­riam ser ca­na­li­zados para micro e pe­quenas em­presas e para a re­cu­pe­ração dos sec­tores pro­du­tivos? Quantos tra­ba­lha­dores po­de­riam ver os seus sa­lá­rios me­lho­rados e as suas car­reiras va­lo­ri­zadas?

In­fe­liz­mente, estes oito mil mi­lhões de euros não estão dis­po­ní­veis para re­solver os pro­blemas na­ci­o­nais. Todos os anos são en­go­lidos pelos juros da dí­vida pú­blica, pri­vando o nosso País de re­cursos vi­tais para o seu de­sen­vol­vi­mento eco­nó­mico e so­cial.

Pe­ri­gosa ilusão

É uma pe­ri­gosa ilusão pensar que o pro­blema da dí­vida está con­tro­lado e que os múl­ti­plos fac­tores ex­ternos que con­di­ci­onam a sua evo­lução terão sempre um de­sen­vol­vi­mento fa­vo­rável. Nin­guém con­segue ga­rantir que a dí­vida so­be­rana por­tu­guesa não será no­va­mente su­jeita a um ataque es­pe­cu­la­tivo, assim como nin­guém con­segue ga­rantir que as taxas de juro pra­ti­cadas pelos mer­cados não vol­tarão a dis­parar, le­vando a um cres­ci­mento ainda maior da dí­vida pú­blica. Na ver­dade, Por­tugal con­tinua tão vul­ne­rável hoje, como no pas­sado, aos ca­pri­chos dos mer­cados e à acção de­vas­ta­dora dos es­pe­cu­la­dores.

É uma pe­ri­gosa ilusão pensar que, sem atacar as causas es­tru­tu­rais da es­tag­nação e do blo­queio ao de­sen­vol­vi­mento na­ci­onal, se pode pros­se­guir in­de­fi­ni­da­mente a po­lí­tica de re­po­sição de di­reitos e ren­di­mentos. Em de­ter­mi­nadas si­tu­a­ções, con­jun­tu­rais, a dí­vida pú­blica pode descer li­gei­ra­mente em per­cen­tagem do PIB, mas qual­quer pe­quena per­tur­bação ex­terna, que o nosso País não con­trola, atira a dí­vida para uma tra­jec­tória as­cen­dente.

Ope­ra­ções de gestão cor­rente da dí­vida, como aquela re­a­li­zada pelos an­te­rior e ac­tual go­vernos de pa­ga­mento an­te­ci­pado da dí­vida ao FMI, subs­ti­tuindo-a por dí­vida mais ba­rata, re­sultam em di­mi­nutas pou­panças que são ime­di­a­ta­mente anu­ladas por uma su­bida das taxas de juro nos mer­cados in­ter­na­ci­o­nais.

Ou­tras pos­si­bi­li­dades por al­guns con­si­de­radas, de mu­tu­a­li­zação da dí­vida, de fi­xação de con­di­ções de fi­nan­ci­a­mento iguais para os es­tados-mem­bros da zona euro ou de re­pa­tri­a­mento dos juros pagos ao BCE, são me­didas que de­pendem da con­cor­dância das ins­ti­tui­ções da União Eu­ro­peia, do BCE ou dos países da zona euro. Mesmo que tais me­didas fossem aceites, vi­riam sempre acom­pa­nhadas de im­po­si­ções ina­cei­tá­veis, se­me­lhantes às do pro­grama da troika ou àquelas apli­cadas à Grécia.

Li­bertar o País do euro

A so­lução não pode estar em micro so­lu­ções que nada re­solvem ou que trazem aco­pladas im­po­si­ções ina­cei­tá­veis que re­pre­sen­ta­riam o re­gresso à po­lí­tica de ex­plo­ração e em­po­bre­ci­mento. A so­lução exige, como o PCP vem pro­pondo desde Abril de 2011, uma re­ne­go­ci­ação da dí­vida nos prazos, juros e mon­tantes, que re­duza sig­ni­fi­ca­ti­va­mente os juros pagos anu­al­mente aos cre­dores. Uma re­ne­go­ci­ação que, de­fen­dendo o in­te­resse na­ci­onal, sal­va­guarde os pe­quenos afor­ra­dores, a se­gu­rança so­cial, o sector pú­blico ad­mi­nis­tra­tivo e em­pre­sa­rial do Es­tado e os sec­tores co­o­pe­ra­tivo e mu­tu­a­lista.

Mas não chega re­ne­go­ciar a dí­vida. É pre­ciso também uma acção de­ci­siva para ul­tra­passar os cons­tran­gi­mentos que, no pas­sado, di­taram o cres­ci­mento ex­po­nen­cial da dí­vida para pa­ta­mares in­sus­ten­tá­veis.

Dois grandes cons­tran­gi­mentos con­tri­buíram para a de­gra­dação da si­tu­ação na­ci­onal, en­travam no ime­diato a re­cu­pe­ração eco­nó­mica e so­cial e, num prazo mais alar­gado, eli­minam as hi­pó­teses de um de­sen­vol­vi­mento du­ra­douro e equi­li­brado. São eles a in­te­gração na zona euro e a do­mi­nação do sis­tema fi­nan­ceiro na­ci­onal pelo ca­pital mo­no­po­lista.

Assim, além re­ne­go­ciar a dí­vida, o País pre­cisa também de se li­bertar da sub­missão ao euro e de re­cu­perar o con­trolo pú­blica da banca. Estes são três ele­mentos fun­da­men­tais que, ar­ti­cu­lados com ou­tras fa­cetas de uma po­lí­tica pa­trió­tica e de es­querda, abrirão ca­minho à re­a­li­zação de um pro­jecto so­be­rano e sus­ten­tável de cres­ci­mento eco­nó­mico e de de­sen­vol­vi­mento so­cial.

 



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